sábado, 29 de agosto de 2009

poemas convertidos - rascunho 1

Wanting To Die

Since you ask, most days I cannot remember.
I walk in my clothing, unmarked by that voyage.
Then the most unnameable lust returns.

Even then I have nothing against life.
I know well the grass blades you mention
the furniture you have placed under the sun.

But suicides have a special language.
Like carpenters they want to know which tools.
They never ask why build.

Twice I have so simply declared myself
have possessed the enemy, eaten the enemy,
have taken on his craft, his magic.

In this way, heavy and thoughtful,
warmer than oil or water,
I have rested, drooling at the mouth-hole.

I did not think of my body at needle point.
Even the cornea and the leftover urine were gone.
Suicides have already betrayed the body.

Still-born, they don't always die,
but dazzled, they can't forget a drug so sweet
that even children would look on and smile.

To thrust all that life under your tongue! --
that, all by itself, becomes a passion.
Death's a sad bone; bruised, you'd say,

and yet she waits for me, year and year,
to so delicately undo an old would,
to empty my breath from its bad prison.

Balanced there, suicides sometimes meet,
raging at the fruit, a pumped-up moon,
leaving the bread they mistook for a kiss,

leaving the page of a book carelessly open,
something unsaid, the phone off the hook
and the love, whatever it was, an infection.



Anne Sexton – The Complete Poems
Marine Books
142-143
“Live or Die” (1966)


QUERENDO MORRER

Respondendo à sua pergunta: não, eu não me lembro da maioria dos dias.
Me visto com minhas roupas, as que não ficaram marcadas por aquela viagem.
E então a luxúria, a luxúria impossível de ser nomeada volta outra vez.

E mesmo assim eu não tenho nada contra viver
e conheço muito bem as coisas das quais você fala,
as folhas da grama e a mobília que colocou no sol.

Mas suicidas têm uma linguagem muito particular.
Eles são como carpinteiros que se perguntam qual a ferramenta adequada,
sem jamais se importarem com o porquê de construir.

Eu me declarei, me anunciei duas vezes, de maneira simples.
Conquistei o inimigo, devorei o inimigo,
me apossei de seu conhecimento e de sua magia.

E desta forma pesada, consciente
eu finalmente descansei, a boca aberta, salivando
esta forma mais tépida do que óleo ou água.

Eu não penso que meu corpo seja como um bordado.
Até a córnea e o resto de urina já se foram.
Os suicidas são aqueles que já traíram o corpo.

Natimortos, eles não necessariamente morrem depois do parto
mas, ofuscados e confusos, nunca se esquecem da droga absolutamente doce
que seria capaz de conquistar o olhar e o sorriso de uma criança.

Forçar toda a vida debaixo da própria língua! –
apenas essa idéia já se transforma em paixão.
A morte é como um osso triste; arranhado, como quiser

e ainda assim ela espera por mim, ano após ano,
para delicadamente consertar uma ferida antiga
para libertar o meu respirar de sua prisão cruel.

Nesse ponto equilibrados, às vezes os suicidas se encontram,
e famintos disputam a fruta, a lua inchada
deixando o pão que confundiram com um beijo,

deixando o livro aberto ao acaso, uma página aleatória
algo que não foi dito, o telefone fora do gancho
e o amor, o que quer que tenha sido, uma infecção.

a história contada de várias coisas

a história contada do abraço

abro meu peito
está tão vazio
não cabe mais ninguém.


a história contada das pernas


decidiram que iam longe,
muito.
cansaram-se.
em acordo de paz com os pés
deitaram-se
e não pretendem se levantar.


a história contada das lágrimas

correram um rio vermelho,
mais triste de todos.
ninguém nunca ouviu
por vergonha mútua.

a história contada das traições

foram bobas e múltiplas mas bastaram
o coração cheio de buracos
as mãos machucadas de cavar.

a história contada dos arrebatamentos

desviam do caminho. pior que ópio.
um bicho feroz.
tenho cicatrizes de batalha
e um tigre em mim que não morre jamais.

a história não contada do adeus

é como um “sim” na frente do altar.
flores. música. vinho.
ruídos ou engasgos
o vislumbre da porta
a vontade de não voltar.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

nada não muda nunca


está aqui esta mulher, andando de salto alto pela casa, a mulher que anda e dança enquanto anda, e tem os cabelos num coque impecável e brincos e pulseiras e anéis, que fuma com elegância cigarros delicados de mulher, que se perfuma e tem as unhas feitas, escolhendo o vestido que usará amanhã para ir ao psiquiatra, para convencer o psiquiatra de que está bem, muito bem obrigada, nunca esteve melhor – ela usa maquiagem e tem os cabelos presos num coque impecável – 6 anos de tratamento não foram em vão, tem que se convencer – antes de convencer o psiquiatra - que a menina assustada, irresponsável, que a menina que usava cores e cores ao mesmo tempo, que essa menina não mais existe, nenhum registro, nem os diários – a mulher elegante queimou os diários, queimou tudo o que fosse comprometedor, vestidos e cartas e rosas guardadas, essa menina não existe, não existem seus cortes e a boca rasgada e a violência, não existe mais a menina grande demais para chorar no chão do quarto mais ainda assim, a menina com sede a menina com fome a menina incapaz de parar a menina


que tinha o coração cheio de sal
como a mulher.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

ártemis

eu sempre quis um irmão. sempre quis alguém que subisse em árvores e brincasse na terra, e fizesse túneis e muralhas na areia (o castelo sempre foi uma desculpa para as passagens subterrâneas), alguém que comigo não tivesse medo de fantasmas e saísse de lanterna em punho desbravando o quintal de madrugada. sempre, sempre quis alguém que corresse comigo e tivesse os joelhos escalavrados, alguém que também ouvisse da servente do colégio que desse jeito você nunca vai poder usar saias quando crescer (no caso dele acredito que ela diria “bermudas”, ou talvez nada – o mundo é injusto), alguém que subisse comigo no telhado e olhasse as estrelas fingindo um telescópio, ou – ainda no telhado – alguém que fizesse mímica de qualquer instrumento musical. sempre quis alguém que gostasse de passar o máximo de minutos debaixo d´água, ouvindo o coração da água bater, o coração que na verdade é o nosso.


sempre quis alguém que descobrisse comigo as quedas, as outras quedas, que fizesse fogueiras para queimar brinquedos e diários, que soubesse das fases e do ritmo da lua, que conversasse com as plantas e conspirasse contra a lei e a ordem. sempre quis alguém que fosse capaz de se sentar ao meu lado e me abraçar em silêncio enquanto eu chorasse a dor do mundo, como se naquele minuto tudo coubesse em mim e eu não desse conta, eu sempre quis alguém que me abraçasse em silêncio sem me recriminar.


eu sempre quis alguém que amasse correr e queimar, e que amasse as alturas e mergulhar e as árvores, e que nunca tivesse medo de nada.


eu sempre quis um irmão, mas só me apareceram fracos.

sábado, 8 de agosto de 2009


[hokusai - não sei o nome nem a data]
tenho lido muito sobre fugas. tenho lido sobre mulheres presas em quartos, em casas, em livros que não podem escrever. tenho lido sobre mulheres de coração apertado e com excesso de sangue, e homens covardes ou vampiros ou fracos. tenho brigado com as pessoas que chamam de covardia o que na verdade é um ato de coragem, ou de cansaço. ir embora não é covardia, procurar a água não é covardia, decidir dormir e nunca mais acordar é coragem, pois perde-se muito. perde-se o sol, o riso, o vento, perdem-se filhos e pais e amigos e amantes. perde-se a vida. virar as costas e seguir para longe de todas essas coisas é a coragem mais triste, é admitir que não, não fui feita para isto.

não é que aqui não me cabe, é que sou eu quem não pode ficar, sou eu quem não tem ossos fortes o suficiente, nem saliva para engolir, nem pés firmes, nem roupas para o frio. meus dentes não são mais de leite e a minha raiva é ruim e eu sofro e tenho culpa, e sou uma farsa, e nunca chegarei a nada e estou cansada de partir.

não se deve anunciar a fuga, a não ser que na verdade você não queira fugir, mas queira um resgate. nada de cartas, de livros enviados pelo correio com bilhetes doces e muito óbvios de "então, amor, até a vista", nada de etiquetar roupas e objetos "isto vai para fulano" nem de telefonemas no meio do caminho. a grande questão é: e as cartas de despedida, as cartas para depois? seria ético ou cruel?

há muito tempo não consigo me decidir, há muito tempo mordo e me arrependo, sofro e me canso, há muito tempo eu não sei. eu amo e me amam muito de volta, e por isso tenho ficado. mas não sei até quando aguento, e por isso, por via das dúvidas, eu tenho feito da minha vida uma eterna despedida.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

começarei hoje um rio e um precipício, e começarei como sempre começo, partindo de um ponto calmo e seguro e de alguém a quem sou fiel, alguém que no caso eu mesma. começarei este rio que me vazará da planta dos pés e será feito de água e memórias, e ele viverá de procurar águas cada vez profundas, cada vez mais frias e este rio – que neste momento será ainda um poço – traçará um limite, uma fronteira entre meu mundo e aquele das pessoas de terra firme. a princípio andarei com a água na altura dos tornozelos, e isto já será um aviso: veja, aquela é a mulher que se entregou à água; veja, aquela é a mulher que comunga com o fundo do lago (porque neste momento o poço já será um lago); veja, esta é a mulher que decidiu partir e começou um precipício.

quando o rio começar e o precipício estiver mais claro eu mergulharei um pouco, terei a água pela cintura e farei desenhos com as mãos e os cotovelos, e de vez quando molharei o rosto e os cabelos, e eles voltarão embaraçados de plantas aquáticas e pequeninas lascas de pedras. flutuarei na superfície, de bruços, prenderei a respiração e sentirei meus pés ficando dormentes – quando o lago se transformar em rio eu não mais poderei pisar fora dele. meus pés terão horror ao chão e minha vida começará a ser a água. perderei as unhas das mãos, manterei as dos pés para eventualidades de correnteza forte – ainda não estarei pronta para o abismo.

então quando o rio for um rio adulto, escuro e cheio e correndo espumas, quando o rio for indomável eu mergulharei todo o meu corpo na água gelada e dançarei submersa, farei isso a cada dez ou outras noites, metade por sentir nisso um prazer absoluto e a outra metade porque o rio me dará ordens e eu, como sua criadora, deverei sucumbir à sua vontade. as ordens imperiosas do rio me afastarão do ar e das outras gentes, e a ele eu serei grata. de dez em dez noites (quando o rio me roubar da vida a seco)eu abrirei meus olhos debaixo d´água e verei meus afogamentos e mergulhos anteriores. na primeira vez verei brinquedos esquecidos e largados na margem e sapatos que não sobreviveram à correnteza. verei todas as coisas que perdi há muito tempo, cadernos, lápis, roupas de boneca, laços de cabelo, verei meu primeiro rio e meu primeiro precipício, começados quando eu era criança, um rio e um precipício de menina, mas não menos vorazes. depois verei dois rios distintos: um rio morto e um rio faminto, folhas antigas quase transparentes, quase só nervuras, e flores de cores tão vivas e tão famintas que me incomodarão. verei as primeiras festas e os primeiros quartos escuros, as escadas e elevadores e salas de espera, o chão da cozinha repetidas vezes, verei a mim mesma atravessando a cidade e o sono, incógnita dentro de ônibus e táxis, chorando, rindo, preocupada, com medo. verei as variações desses rios, as cheias e as secas, verei quando correram paralelos e me arrancaram sangue, quando foram bons para mim ou quando foram discretos e não me incomodaram. de dez em dez noites mergulharei e a cada volta minha pele será mais fria e clara e meu coração mais vivo e forte, e de dez em dez noites, a cada volta da noite, eu me sentirei mais limpa e mais verdadeira, até que chegará o dia (ou a noite) em que
eu não poderei mais desobedecer o rio; estarei vivendo dentro dele, dentro da água fria e fria, embaraçada em lembranças e mortes e desejos antigos e presentes, em flores obscenas. meu corpo será pálido e meus cabelos terão crescido, estarão tão longos quanto o rio, e eu dançarei dentro do rio e cada poro meu será o rio. eu não me importarei mais com as pessoas da terra firme, as pessoas da terra firme que estarão cuidadosamente com seus pés longe da margem e de mim e que dirão: vejam, esta é a mulher que começou um rio e um precipício e carregou-os no ventre, esta é a mulher que morreu a terra, esta é a mulher
que escolheu a água
para ser real.