terça-feira, 4 de agosto de 2009

começarei hoje um rio e um precipício, e começarei como sempre começo, partindo de um ponto calmo e seguro e de alguém a quem sou fiel, alguém que no caso eu mesma. começarei este rio que me vazará da planta dos pés e será feito de água e memórias, e ele viverá de procurar águas cada vez profundas, cada vez mais frias e este rio – que neste momento será ainda um poço – traçará um limite, uma fronteira entre meu mundo e aquele das pessoas de terra firme. a princípio andarei com a água na altura dos tornozelos, e isto já será um aviso: veja, aquela é a mulher que se entregou à água; veja, aquela é a mulher que comunga com o fundo do lago (porque neste momento o poço já será um lago); veja, esta é a mulher que decidiu partir e começou um precipício.

quando o rio começar e o precipício estiver mais claro eu mergulharei um pouco, terei a água pela cintura e farei desenhos com as mãos e os cotovelos, e de vez quando molharei o rosto e os cabelos, e eles voltarão embaraçados de plantas aquáticas e pequeninas lascas de pedras. flutuarei na superfície, de bruços, prenderei a respiração e sentirei meus pés ficando dormentes – quando o lago se transformar em rio eu não mais poderei pisar fora dele. meus pés terão horror ao chão e minha vida começará a ser a água. perderei as unhas das mãos, manterei as dos pés para eventualidades de correnteza forte – ainda não estarei pronta para o abismo.

então quando o rio for um rio adulto, escuro e cheio e correndo espumas, quando o rio for indomável eu mergulharei todo o meu corpo na água gelada e dançarei submersa, farei isso a cada dez ou outras noites, metade por sentir nisso um prazer absoluto e a outra metade porque o rio me dará ordens e eu, como sua criadora, deverei sucumbir à sua vontade. as ordens imperiosas do rio me afastarão do ar e das outras gentes, e a ele eu serei grata. de dez em dez noites (quando o rio me roubar da vida a seco)eu abrirei meus olhos debaixo d´água e verei meus afogamentos e mergulhos anteriores. na primeira vez verei brinquedos esquecidos e largados na margem e sapatos que não sobreviveram à correnteza. verei todas as coisas que perdi há muito tempo, cadernos, lápis, roupas de boneca, laços de cabelo, verei meu primeiro rio e meu primeiro precipício, começados quando eu era criança, um rio e um precipício de menina, mas não menos vorazes. depois verei dois rios distintos: um rio morto e um rio faminto, folhas antigas quase transparentes, quase só nervuras, e flores de cores tão vivas e tão famintas que me incomodarão. verei as primeiras festas e os primeiros quartos escuros, as escadas e elevadores e salas de espera, o chão da cozinha repetidas vezes, verei a mim mesma atravessando a cidade e o sono, incógnita dentro de ônibus e táxis, chorando, rindo, preocupada, com medo. verei as variações desses rios, as cheias e as secas, verei quando correram paralelos e me arrancaram sangue, quando foram bons para mim ou quando foram discretos e não me incomodaram. de dez em dez noites mergulharei e a cada volta minha pele será mais fria e clara e meu coração mais vivo e forte, e de dez em dez noites, a cada volta da noite, eu me sentirei mais limpa e mais verdadeira, até que chegará o dia (ou a noite) em que
eu não poderei mais desobedecer o rio; estarei vivendo dentro dele, dentro da água fria e fria, embaraçada em lembranças e mortes e desejos antigos e presentes, em flores obscenas. meu corpo será pálido e meus cabelos terão crescido, estarão tão longos quanto o rio, e eu dançarei dentro do rio e cada poro meu será o rio. eu não me importarei mais com as pessoas da terra firme, as pessoas da terra firme que estarão cuidadosamente com seus pés longe da margem e de mim e que dirão: vejam, esta é a mulher que começou um rio e um precipício e carregou-os no ventre, esta é a mulher que morreu a terra, esta é a mulher
que escolheu a água
para ser real.

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